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terça-feira, maio 27, 2008

Ocultos


Noite alta. A luz esgueira-se. Pequenas manchas aninham-se nos cantos. Uma a uma as trevas as caçam, envolvem, consomem. Restam apenas luminescências domadas e entregues, prostituídas em sombras, em cujos gemidos contidos concentram-se olhos insones, entretidos com a sutil promiscuidade desses enamorados extremos. Ao oriente do leito um corpo ronrona suave. Sem formas aparentes ou lembranças ainda mornas que o tornem inconfundível, ele ondula na escuridão. Sua respiração adensa o ambiente. Oculto em aminésia noturna, o rosto ausente, recém beijado, o corpo ainda crispado pelos dentes que lhe colheram a flor da pele, o nome que se perdeu no desejo denunciam o dia eminente. Quem é ele? Ora, mais um corpo ao oriente do desejo. O que não se sabe mais é quem está no oposto hemisfério da pergunta, torcendo para que a luz continue restrita aos caprichos da noite.

sábado, maio 24, 2008

Melancolia




A melancolia é um refúgio precioso. Às vezes traveste de elevação o que é pura mediocridade. Adorna o óbvio fazendo-o passar por singularidade, a tibieza converte em arte. Alguns dirão, por exemplo, que os poetas são seres melancólicos, cindidos do cotidiano por um desejo de existir exasperado e exasperante, tão demasiado viventes que a maioria de nós, andarilhos moribundos, somente pode vê-los como espíritos obscuros, aos quais precisamos imputar a tristeza, o pesar, pois, do contrário, como suportar nossa maltrapilha felicidade? Certamente os poetas são melancólicos. Diria eu que por respeito ou luto por nosso entusiasmo calculado, pela infame soberba que nos mantém aquém da vida, enquanto eles estão absortos em amor fati, lançados à relva sobre o torso de Dionísio ou adormecidos gentilmente nos ombros de Apolo. Aos filósofos também cai bem a alcunha da melancolia, agravada pela ausência premeditada da realidade. Enquanto ao poeta dedica-se a compaixão, aos pensadores reservamos a distância da anedota. É mais seguro guardá-los trôpegos, com os olhos feridos pela poeira e os pés cambalentes no ar. Afinal, estamos tão enraizados que perdemos a capacidade das alturas, embora nos açoite o desejo por elas. Acovardados, prefirimos exorcizar as lonjuras a correr seus riscos e perdas. Àqueles que se aventuram pelas angústias da razão empurramo-lhes a melancolia, os guardarmos seguros no riso para que não ousem revelarem a nós a inapelável tristeza que nos devora tácita.